Terminei de assistir à primeira temporada de “The Handmaid’s Tale”, série inspirada no livro de mesmo nome da escritora canadense Margaret Atwood, aqui traduzido como “O Conto da Aia” (editora Rocco).
Basicamente, para quem não está por dentro, “The Handmaid’s Tale” se passa num futuro próximo em que parte do que era os Estados Unidos se torna um país chamado Gilead.
Nessa nova nação, algumas mulheres são designadas para serem Aias na casa de homens poderosos. Além de desempenhar algumas atividades corriqueiras, como comprar alimentos para a residência, elas têm uma função importante: gerar filhos.
Na “realidade” em que se passa a série, as taxas de natalidade caíram drasticamente, e poucas mulheres restaram férteis. Por Gilead ser uma teocracia, a concepção se dá de modo natural, ou seja, por meio de relações sexuais.
Trocando em miúdos: as Aias são estupradas por seus “senhores” uma vez por mês – durante o período fértil, obviamente.
Esse é o cerne da série e talvez seu ponto mais chocante, mas há todo um contexto que pode ser considerado tão – ou até mais – chocante quanto esse aspecto.
Gilead não nasceu do dia para a noite. Houve um golpe, ao que tudo indica militar, que derrubou o governo dos Estados Unidos e tomou seu lugar. Houve a implantação de uma teocracia, que é um sistema de governo baseado na ideia de que os governantes são escolhidos de Deus. Houve a perseguição de minorias, como os homossexuais, e houve a gradual supressão de direitos das mulheres. Houve, também, uma espécie de criminalização do prazer sexual. Em Gilead, o prazer sexual, ou “a luxúria”, é pecado.
E é por esses motivos que tanto o livro de Atwood quanto a série têm sido tão comentados. A nossa realidade tem, cada vez mais, dado motivos para fazermos paralelos com a ficção distópica de Atwood. Nos EUA, grupos evangélicos veem a eleição de Donald Trump como uma intervenção divina. Sabidamente misógino e preconceituoso, Trump não tem pudor de tratar mulheres de maneira diferente, como se elas fossem inferiores. Seu vice, Mike Pence, é reconhecidamente um fundamentalista homofóbico. Entre os “trumpistas”, tanto políticos quanto cidadãos apoiadores, há supremacistas brancos e todo tipo de racistas, inclusive neonazistas.
Aqui, no Brasil, temos uma situação bem parecida. Igualmente misógino e preconceituoso, Bolsonaro é visto por uma parcela da população como um “ungido de Deus”. Mulheres que o apoiam acham que a função da mulher é ser mãe (Damares), que a mulher deve obediência aos homens e que o seu lugar é cuidando da casa e dos filhos.
O vice de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão, é um militar que fala abertamente em “autogolpe” e, assim como o presidente, idolatra um dos maiores sanguinários da nossa História: Carlos Alberto Brilhante Ustra, o maior torturador da Ditadura Militar.
Para completar a comparação, há, entre os bolsonaristas, tanto políticos quanto cidadãos apoiadores, supremacistas brancos e todo tipo de racistas, inclusive neonazistas.
É esse o caldo que torna “The Handmaid’s Tale”, livro e série, tão relevante. Essa história, que por enquanto é somente ficcional, serve de alerta para todos nós. O perigo está mais próximo do que imaginamos, e, para evitar que ele se torne real, é preciso admitir a sua viabilidade e lutar contra qualquer tipo de ataque a direitos e liberdades.
Gilead ainda não existe, mas não é impossível que venha a existir.
Assisti a série há pouco tempo e, dias depois, continuo refletindo sobre a minha reação enquanto assistia, tudo parecia bizarro, inacreditável mas não distante. Por mais que seja ficção, até o momento, quem tem acompanhado o cenário político do nosso país, ou até mesmo dos Estados Unidos, sabe que viver a realidade de Gilead não é impossível.
Bom texto, Rafael. Parabéns!! Vi seu post no insta e vim correndo pra ler. Boa leitura!
Comentei com um amigo que a realidade até tira um pouco do impacto da série. É terrível. Espero que tudo não passe de insinuação, e que em breve esses fantasmas estejam bem longe da gente. Obrigado pela leitura e pelo comentário!
Boa Tarde…Assisti as duas temporadas e realmente deu-me calafrios….lutemos sempre pra fique só no ficcional….Damares seria a Tia Lydia..
Verdade, Rejane. Eu diria até que, de certa forma, a Damares já é a Tia Lydia.