Há pouco mais de três anos, li “O imitador de vozes”, livro de contos do escritor austríaco Thomas Bernhard. Em um texto que escrevi sobre ele, disse que os contos são “Curtos, absolutamente bem escritos e em sua maioria trágicos”. Disse, também, entre outras coisas, que, “À primeira vista, o que mais chama a atenção em “O imitador de vozes” é a forma como ele é escrito. Pode-se dizer que a linguagem é formal, talvez até um tanto rebuscada – sem qualquer pedantismo, é bom que se diga. Algumas passagens são tão exemplarmente bem escritas que o admirador da língua pode se ver lendo duas, três, quatro vezes o mesmo trecho, de tão belo. É importante mencionar, portanto, o excelente trabalho do tradutor da edição brasileira, Sergio Tellaroli”.
Então reli o trecho de um dos contos, “Serviço público”, e decidi reproduzi-lo na íntegra aqui no blog. Não estranhe o formato do conto: é assim que está no livro, em um parágrafo só. E, como sou camarada, coloco a imagem da capa num tamanho que dá para ler o conto que dá título ao livro. É isso mesmo: o conto coube na capa.
“No golfo Pérsico, travamos conhecimento com um bibliotecário alemão que, por razões políticas, como ele próprio afirmou, o governo da Alemanha transferira da biblioteca da Universidade de Marburg an der Lahn para uma cidade no já mencionado golfo Pérsico. Soubemos da existência do bibliotecário em Shiraz, onde moramos durante várias semanas com o propósito de estudar os hábitos dessa antiquíssima cidade persa, e, depois de termos ido visitá-lo num hospital local, ficamos chocados com seu estado. O homem estava quase totalmente paralisado e mal conseguia se fazer entender. Tinha escrito um artigo contra a ordem jurídica alemã numa publicação científica de Frankfurt, e essa teria sido a razão pela qual o haviam transferido para o golfo Pérsico. De início, ele se conformara com a situação, porque o golfo Pérsico lhe interessava e porque acreditara que ali poderia dedicar-se a seus estudos. Mas o clima no golfo Pérsico, que seria na verdade um clima letal, o destruíra e, em última instância, aniquilara em pouquíssimo tempo. Acreditava que seu grande erro fora ter ingressado no chamado serviço público, o que significara para ele nada menos que sua destruição sistemática – primeiro, a destruição intelectual e, por fim, também a destruição física. Quem entra para o serviço público, disse-nos ele, por qualquer razão que seja e em que cargo for, é destruído e aniquilado. Dirigira centenas de petições ao governo alemão a fim de que o retirasse do inferno no golfo Pérsico, para repetir a expressão que usou, mas todas essas petições teriam permanecido sem resposta. O Estado a que pretendera servir mas que uma única vez se permitira criticas o havia deliberadamente enviado para a morte. Não pudemos ajudar o bibliotecário. Quatro dias após nossa visita, soubemos de sua morte. Três semanas mais tarde, como nós mesmos pudemos constatar, o governo alemão publicou no Frankfurter Allgemeine uma nota de falecimento, na qual lamentava a morte do bibliotecário. O serviço público aniquila todo aquele que nele ingressa. No Estado, pouco importa a que senhor se pretenda servir: será sempre o senhor errado.”