Em 2015, aproveitando a ocasião do lançamento de “Roth libertado – O escritor e seus livros”, da jornalista Claudia Roth Pierpont, fiz uma entrevista com a autora sobre a obra. O material foi publicado na infelizmente extinta Revista Brasileiros (que hoje se transformou no site páginaB!). Como o conteúdo não está mais disponível na internet, decidi republicá-lo aqui.
Costuma-se dizer, no meio literário, que a real importância de um escritor só pode ser medida após vinte anos – ou mais – de sua morte. Isso não chega a ser uma regra, mas há exceções. José Saramago, J.M. Coetzee e Alice Munro são alguns exemplos, mas o maior deles talvez seja Philip Roth.
Nascido em Newark, em 1933, Roth construiu, ao longo de cinquenta e um anos (seu primeiro livro foi publicado em 1959, e o último, em 2010) uma das obras literárias mais sólidas dos tempos modernos.
Livros como “A pastoral americana”, “O complexo de Portnoy”, “Complô contra a América”, “O teatro de Sabbath”, “A marca humana” e “Operação Shylock” movimentaram a cena literária dos Estados Unidos e provocaram diversas polêmicas: com judeus, feministas, críticos literários e até com a comunidade nipônica.
Existem vários títulos sobre a obra de Philip Roth, em inglês, mas nenhum deles tem o fôlego de “Roth libertado – O escritor e seus livros”, de Claudia Roth Pierpont, publicado originalmente em 2013 e agora lançado no Brasil.
Apesar do sobrenome, Claudia não tem nenhum parentesco com o escritor. Mas a jornalista da New Yorker contou com a grande vantagem de ter se tornado amiga de Roth na última década. A proximidade com o autor foi de extrema valia para a escritura do livro, que mostra como as experiências pessoais de Roth – ter nascido em uma família judia, seu tumultuado primeiro casamento, seus relacionamentos intensos e conturbados, suas amizades com outros escritores – foram determinantes para a construção de suas obras.
Não é nenhuma novidade que a vida privada dos escritores invariavelmente rende material para suas ficções. Mas, no caso de Philip Roth, alguns fatos têm grandes proporções – e graves consequências.
Híbrido de biografia e crítica literária, como define a autora na entrevista a seguir, “Roth libertado” pretende ser, ao mesmo tempo, uma introdução àqueles que pouco ou nada sabem sobre Philip Roth e um estudo aprofundado sobre o autor e suas obras, para os iniciados. Uma missão complexa que a autora, escrevendo de forma clara e objetiva, e ministrando corretamente as doses de crítica literária e informações biográficas, executa com sucesso.
1) Para os leitores de Roth a resposta para esta pergunta é óbvia. Mas, para aqueles que não o leram ainda: por que você decidiu escrever um livro sobre Philip Roth?
Porque ele é, na minha opinião, o escritor americano mais implacável, interessante e importante da segunda metade do século XX. Existe uma frase de Kafka que Roth utiliza para descrever o próprio trabalho, que é a seguinte: “Acredito que devemos ler apenas aqueles livros que nos mordem, que nos picam. Se um livro não nos desperta como um golpe na cabeça, por que lê-lo, então?”. Os livros de Roth inevitavelmente nos mordem e nos picam: eles são vigorosos, comoventes, provocantes, divertidos, brutalmente honestos. Eles deixam nossas mentes em polvorosa. E, num espaço de cinquenta anos, ele abordou com espantosa habilidade temas como sexo, amor, política, enfim, todos os principais temas da vida, além de, em seus livros mais recentes, ter escrito sobre o medo que causam a velhice e a proximidade da morte, tudo isso de uma forma incrivelmente divertida. Então, acho que a pergunta correta seria: como eu poderia não escrever sobre ele?
2) Nas primeiras páginas do livro você fala sobre como conheceu Roth e sobre a amizade que nasceu a partir daí. Como você se sentiu escrevendo sobre um amigo? Como decidiu revelar ou não determinadas informações sobre ele?
De uma certa maneira, eu sentia que estava escrevendo, ao mesmo tempo, duas histórias diferentes. Primeiro, eu queria escrever sobre todo o trabalho de Roth, seus trinta e um livros, e fazer isso de forma objetiva, como uma crítica. Como ele começou? Como ele evoluiu? Quais são seus melhores livros, quais os mais fracos? E por quê?
Mas eu também percebi que tive o grande privilégio de ouvi-lo falar sobre seu trabalho ao longo dos anos, como sua amiga, e também durante as várias conversas que tivemos enquanto eu escrevia este livro. Por causa de nossa amizade, eu senti que poderia oferecer insights não apenas sobre seu processo criativo, mas também sobre o homem – existem tantos mal-entendidos sobre ele por aí! – que escreveu esses livros espantosos. Quantos críticos tiveram uma oportunidade como essa? Estava claro, para mim, que eu tinha a responsabilidade de incluir, sobre a vida dele, tudo o que pudesse ajudar os leitores a entender suas obras. Foi assim que decidi o que estaria dentro ou fora do livro.
3) Lendo o penúltimo capítulo eu achei que você foi especialmente dura com ele, ao falar sobre “A humilhação”. Como está a amizade agora? Sobreviveu ao livro?
A única forma de fazer esse trabalho era sendo completamente honesta. Roth concordou em não ler nada do que eu estava escrevendo. Só leria depois que o livro fosse publicado. Ou seja: em nenhum momento senti como se ele estivesse olhando por cima do meu ombro. Exerço o jornalismo há mais de vinte anos, eu tinha que escrever sobre os livros de Roth como se estivesse escrevendo sobre as obras de qualquer outro autor.
É claro que isso significava encarar o risco de que a nossa amizade talvez não sobrevivesse ao livro. Sempre coloquei em primeiro lugar a responsabilidade com o que eu estava escrevendo, com a sinceridade. E com certeza não há nenhum autor que entenda esse compromisso tão bem quanto Philip Roth. Ele talvez não concorde com certas críticas que fiz a alguns de seus livros, mas fico feliz em dizer que a nossa amizade continua firme.
4) Alguns artigos publicados nos Estados Unidos e na Inglaterra se referem ao seu livro como uma biografia. Aqui no Brasil ele foi lançado como algo entre o ensaio e a crítica literária. Discutir o gênero talvez seja irrelevante, mas como você o classifica?
A impressão que tenho é a de que escrevi uma espécie de livro híbrido: em alguns pontos, ele é mais um trabalho de crítica literária, porque eu quis me concentrar na incrível originalidade dos livros de Roth, mais que nos detalhes de sua biografia. Mas a vida dele é tão ligada à sua ficção que eu tive a necessidade de dar ao leitor uma boa dose de informações biográficas, para que tudo fizesse sentido. Não de forma excessiva, apenas o suficiente para compreender a vida e a mente que fez esses livros virem à tona. Por exemplo: quando Roth diz que sua primeira esposa foi a melhor professora de escrita criativa que ele teve – uma declaração imensamente complexa e irônica –, o leitor precisa saber sobre o casamento, para entender por que ele diz isso.
Há ainda outro componente, é claro, que é um elemento particular deste livro: as histórias pessoais que, na minha opinião, ajudariam ao leitor a entender o homem – que é muito diferente, em diversos pontos, de sua pessoa pública. No último capítulo, eu quis que os leitores simplesmente sentissem o prazer da companhia de Roth: sua perspicácia, sua ternura, sua vivacidade, suas eventuais tristezas. Então, sim, é um livro híbrido, difícil de categorizar. Eu realmente não segui um modelo para escrevê-lo. É um livro sobre um grande escritor e sobre como ele trabalha. Eu tentei utilizar todos os pontos de vista e toda a informação que eu tinha para fazer um retrato de seus pensamentos e, de novo, de seu processo criativo: crítica literária, biografia, histórias pessoais. Eu realmente o criava enquanto escrevia.
5) Os livros de Roth que li não me pareceram bons no início. Mas, do meio para o fim, e principalmente após o fim – por dias, semanas, meses, e até anos – eles ressoaram em minha mente. Você diria que esse é, na maior parte dos casos, o “Efeito Roth”?
Minha experiência é um pouco diferente. Eu me apaixonei por “O escritor fantasma” desde a primeira linha, antes mesmo de eu saber qualquer coisa sobre a história. É um livro que você simplesmente não consegue abandonar. E tente ler apenas a primeira frase de “O teatro de Sabbath”! Eu diria que esse “Efeito Roth” acontece porque a voz nas páginas é tão viva, tão urgente, tão instantaneamente envolvente que o leitor é apanhado desde o começo. Mas acho que é verdade que os livros ficam com você por meses, anos. Eles se tornam parte de sua vida.
6) Todos os anos Philip Roth é cotado para ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Não há dúvidas de que ele mereça, mas a Academia parece não pensar assim. Você acha que alguns dos livros mais antigos de Roth, principalmente “O complexo de Portnoy”, “O seio”, “Our gang” e “The great american novel” eliminaram as chances de ele ser premiado, por causa das polêmicas causadas por eles? Mais especificamente: em sua opinião, por que Philip Roth não ganhou o Nobel? É uma pergunta boba, mas: isso o incomoda?
Não tenho nenhuma informação “de dentro” sobre como funciona o comitê do Nobel. Concordo que Roth já deveria ter ganhado o prêmio há muito tempo, mas não sei por que isso não aconteceu. Há alguns anos, alguém do comitê provocou um pequeno escândalo aqui nos Estados Unidos ao se pronunciar contra toda a literatura americana contemporânea, e talvez isso tenha alguma coisa a ver com o fato de Roth não ter sido premiado. Tenho certeza de que ele ficaria feliz em receber o prêmio, mas, aos quase oitenta e dois anos, e com a obra extraordinária que tem, isso definitivamente não o faz perder o sono.
7) Li um pouco sobre seu primeiro livro, “Passionate Minds: Women Rewriting the World”, e ele me pareceu muito interessante. Agora, com a publicação de “Roth Libertado”, há alguma chance de vê-lo publicado no Brasil? E o que você está fazendo agora? Continua na New Yorker? Tem planos para um novo livro?
Adoraria que “Passionate Minds” estivesse disponível no Brasil. Mas, infelizmente, não há nada nesse sentido. Quanto a mim, continuo na New Yorker. Há alguns meses publiquei um longo artigo sobre Nina Simone. Agora estou terminando uma coleção de ensaios sobre temas americanos, começando com Edith Wharton, passando por F. Scott Fitzgerald, George Gershwin, Katharine Hepburn e James Baldwin, entre outros. O livro será publicado aqui no primeiro semestre de 2016. Espero que seja publicado no Brasil, também.