A vida do leitor apaixonado tem dessas: às vezes ele acha que vai ler um determinado livro de imediato, logo após o lançamento, mas, na verdade, a leitura só acontece muito tempo depois.
(Isso quando acontece, afinal, quem conhece alguns grandes bibliófilos como Umberto Eco, Alberto Manguel, José Mindlin, entre outros, sabe que muitos livros correm o risco de serem guardados numa estante apenas para de lá nunca mais saírem.)
Dito isso (note, caro leitor, que o primeiro parágrafo e o parêntese que o sucedeu são apenas tentativas de “limpar a barra” deste leitor apaixonado; a propósito, acabo de lembrar que “O leitor apaixonado” é o título de um livro do Ruy Castro), admito que demorei muito de ler “Retratos imorais” (Alfaguara, 2010, 184 págs.), terceiro livro de contos de Ronaldo Correia de Brito.
Mas não deveria ter demorado tanto. Afinal, havia lido seus dois primeiros, “Faca” e “Livro dos homens”, ambos publicados pela extinta Cosac Naify, e gostado bastante (principalmente de “Livro dos homens”, sobre o qual escrevi). Mas, enfim, é a vida.
(Outro parêntese: recentemente, a Alfaguara colocou nas livrarias uma edição com esses dois livros, mas as edições da Cosac ainda podem ser adquiridas via Amazon ou sebos.)
Nascido no interior do Ceará, Ronaldo foi morar no Recife aos 17 anos. Lá, estudou medicina, profissão que exerce até hoje. Todas essas influências – o sertão, a capital, a medicina (e outras mais) – estão “juntas e misturadas” nos contos de “Retratos imorais”.
Há contos urbanos, como “Duas mulheres em preto e branco”, que se passa num apartamento na capital pernambucana. Uma mulher descobre que a amiga de décadas estava tendo um caso com seu marido. Enquanto memórias da juventude são relembradas, a mulher traída espanca a (ex?)amiga, para no final revelar que a traição é mais complexa do que o leitor imaginava. E há contos que se passam no sertão, como o curto “Menino sonhando o mundo”, em que o tio do protagonista retorna para o interior após a busca por uma vida melhor no “Sul” fracassar.
O lado médico do autor se faz presente em “Catana”, em que uma equipe de plantonistas precisa atender um traficante baleado que está entre a vida e a morte. “A equipe não se motiva a tratar marginais com ficha de estupro, assassinato, roubo e tráfico, e este possui todos os requisitos de um bandido completo.” A princípio, apenas o primeiro cirurgião é informado a respeito da natureza do rapaz e, por questões éticas, precisa manter a informação em segredo. Mas aos poucos a equipe vai sabendo e os dramas de cada um vão sendo revelados: o filho da anestesista havia entrado no mundo das drogas, e a namorada do segundo cirurgião fora brutalmente violentada por bandidos. Seria ele a fonte das drogas para o filho da anestesista? Seria ele um dos bandidos que abusaram e mataram a namorada do cirurgião? Sendo ele, como agir? Salvá-lo ou deixá-lo morrer (ou matá-lo)?
O escritor se revela em “Homem em Berkeley”, uma narrativa sobre um autor que foi convidado para um período de residência na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Ao mesmo tempo em que a literatura brasileira é “estranha” para os alunos, os alunos – e o lugar – são “estranhos” para o “writer in residence brasileiro”.
E o jovem Ronaldo Correia de Brito faz sua aparição na mais autobiográfica de todas as narrativas do livro: “Pai abençoa filho”. Nela, o autor rememora sua emocionante partida do Crato, no Ceará, para o Recife, sob os olhos exigentes do pai – “Era lei em nossa casa: os filhos homens não podiam chorar” -, que o acompanha até a rodoviária.
Emocionante, terno e por vezes cruel, “Retratos imorais” é um livro forte, e o impacto dos seus contos e narrativas não se restringe ao fim da leitura de cada uma das histórias. Mesmo após terminado o livro, essa força continua presente – e é amplificada. Mais um sinal de que estamos diante de uma grande obra. O que não é nenhuma novidade para quem já leu Ronaldo Correia de Brito.