No conto “O curioso caso de Benjamin Button”, de Francis Scott Fitzgerald, uma mulher dá à luz a um “bebê” de aparentemente setenta anos de idade, o que causa furor – e mesmo terror – no hospital e na cidade. Porém, não demora para que a história assombrosa seja esquecida e Benjamin possa ter uma vida relativamente tranquila.
Nascido com cerca de setenta anos, Benjamin tem a experiência e a perspicácia dos mais velhos. Mas, ao longo dos anos, ele rejuvenesce, e, à medida que vai ficando fisicamente mais jovem, sua inteligência e sua sabedoria vão declinando.
Para quem não conhece, vale a pena tanto ler o conto, presente no livro “Seis contos da era do jazz e outras histórias” (José Olympio, 2009, 7ª edição), quanto assistir à sua adaptação cinematográfica, de 2008, protagonizada por Brad Pitt.
Dito isso, nos apeguemos apenas a este pequeno detalhe: à medida que completa mais aniversários – e fica mais jovem fisicamente -, o personagem vai perdendo a sua sabedoria, se rendendo aos ímpetos dos pouco experientes.
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Leio Rubem Fonseca há quase quinze anos. Meu primeiro contato com a sua literatura foi com, tenho quase certeza, o livro “Feliz ano novo”, provavelmente lido durante o ensino médio. Um dos contos do livro, “Passeio noturno”, ressoou em minha mente por anos e anos – continua ressoando, na verdade. É uma história curta, simples e forte, que tem o poder de deixar leitores inexperientes aturdidos.
A leitura daquele livro acabou interferindo na minha maneira de escrever. Muitos de meus primeiros contos são tentativas de imitar Fonseca. Estão lá a objetividade, a simplicidade, a narrativa na mão de alguém que cometeu uma – ou mais de uma – violência, e a crueldade. Por isso, por causa dessa influência, passei anos sem lê-lo, para não me tornar mais um dos seus incontáveis imitadores.
Voltei a lê-lo somente alguns anos depois, mas não na forma de conto, e sim de romance: “Diário de um fescenino” (2003). Decidido a não revisitar o Rubem de “Feliz ano novo” e outros livros emblemáticos – ainda sentia que poderia tentar imitá-lo -, voltei a lê-lo apenas em 2006, quando ele publicou uma nova reunião de contos: “Ela e outras mulheres”. Na verdade, tentei ler: achei algumas histórias tão ruins que o abandonei.
Mas isso não me fez desistir do Fonseca, é claro. Três anos depois, quando ele lançou o romance “O seminarista”, primeiro livro por sua nova casa editorial, a Agir (atualmente é a Nova Fronteira, que faz parte do mesmo grupo editorial ao qual pertence a Agir, o Ediouro), tratei de adquiri-lo assim que publicado. Li e, apesar de algumas ressalvas, gostei bastante. Não é um grande livro, mas é bem escrito, tem uma boa história e é divertido. Em todo caso, isso não foi suficiente para me fazer dar atenção aos livros mais antigos do autor.
Em 2011, Fonseca publicou dois livros: “José”, uma novela, e “Axilas e outras histórias indecorosas”, de contos. Comprei os dois, folheei ambos, mas não cheguei a ler. Eu passava por uma fase terrível de (não)leituras e não conseguia ler quase nada do começo ao fim.
Passados dois anos, o autor nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, mas radicado na capital do Rio de Janeiro volta ao conto com a coletânea “Amálgama”. Já refeito do período tenebroso de poucas leituras completas, comprei o livro com grande expectativa. Que não foi correspondida: o considerei apenas mediano.
Mais dois anos se passaram e, prestes a completar noventa anos de idade (ele nasceu em 11 de maio de 1925), Rubem Fonseca publicou mais um livro, lançado em abril deste ano: “Histórias curtas” (Nova Fronteira, 176 págs., R$ 34,90).
Os trinta e oito contos reunidos no livro são, de fato, bem curtos. São poucos os que têm cinco ou mais páginas. Porém, a busca pela concisão, geralmente vista como uma maneira de cortar o que não é essencial, talvez tenha prejudicado a obra. A maioria dos contos se encerra de maneira abrupta demais, mal dando tempo para o leitor aproveitar a história.
Além disso, há a falta de senso de quase todas as histórias, a começar pela primeira, “A luta contra o preconceito racial”, cujo protagonista, após ser preso por pichar muros com os dizeres “abaixo o racismo”, decide ter um filho com uma negra e um filho com uma índia. Nascidas as crianças, ele as leva para passear em carrinhos de bebê, nos quais estão colados cartazes que pedem o fim do preconceito racial.
Outra história despropositada, entre tantas, é a que tem como protagonista uma mulher obesa que já foi “humilhada”, “desprezada”, “desdenhada” e “aviltada” e que publica anúncios no jornal dizendo-se “mulher jovem, esbelta, bonita”. Ao chegar na casa dos “clientes” e ser confrontada com o anúncio – “você não era jovem, esbelta e bonita” -, ela os mata.
Ainda assim, é possível encontrar um vestígio de qualidade em “Histórias curtas”. Ele está, por exemplo, em “A noviça”, uma “história de amor”, como diz o narrador. Mas isso não é suficiente para salvar a obra, que, no final das contas, até diverte o leitor, justamente pelo nonsense que impera no livro.
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Rubem Fonseca estreou na literatura em 1963, já com quase quarenta anos de idade, com o livro de contos “Os prisioneiros”, considerado o melhor livro do gênero naquele ano e uma das melhores estreias dos últimos tempos. Depois vieram outros dois volumes de histórias curtas: “A coleira do cão” e “Lúcia McCartney”, também elogiadíssimos.
Entre o início retumbante e os não tão impressionantes livros mais recentes, há uma obra respeitável que inclui clássicos da nossa literatura contemporânea, como o já citado “Feliz ano novo”. Talvez fosse o caso de considerarmos Rubem Fonseca uma espécie de Benjamin Button.
Agora, ele estaria escrevendo e publicando os seus primeiros livros, suas obras mais verdes, e aí seguiríamos sua linha do tempo de maneira inversa, chegando até as suas primeiras/últimas obras, que só poderiam ser escritas por um escritor maduro – apesar de sua estreia um tanto tardia.
Não que os mais recentes livros de Fonseca sejam tão ruins – exceto este “Histórias curtas”, que realmente é muito fraco. Mas se invertermos a linha do tempo de sua carreira ela ficará mais interessante, e o “fim” dela fará mais jus à obra excepcional que o autor construiu.
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Amo Rubem Fonseca! Ta aí um cara que faz a gente sentir.
🙂