Há pouco mais de dois anos foi lançado, aqui no Brasil, o livro “Roth Libertado – O escritor e seus livros”, de Claudia Roth Pierpont, uma biografia de Philip Roth. Elogiadíssimo nos Estados Unidos, o trabalho de Claudia Pierpont (que, apesar do sobrenome do meio, não tem nenhum parentesco com o biografado) é um prato cheio para os admiradores do autor.
Apesar de ter gostado muito do livro (a propósito, escrevi sobre ele e entrevistei a Claudia), não perdi a vontade que sempre tive de ler “The Facts”, livro autobiográfico de Philip Roth publicado em 1988. O motivo é mais que óbvio: por mais que um biógrafo faça um grande trabalho, ou talvez precisamente por isso, é no mínimo interessante ler a versão do próprio escritor sobre os acontecimentos que vivenciou.
Nesse sentido, “Os fatos” (Companhia das Letras, tradução de Jorio Dauster), finalmente lançado no Brasil em agosto do ano passado, 28 anos depois de sua publicação nos Estados Unidos, é um “complemento” fundamental a “Roth Libertado”. (“Complemento” vem entre aspas porque, cronologicamente, a palavra não faz sentido.)
Claudia usou “Os fatos” como fonte de pesquisa, é verdade, e o cita diversas vezes em seu livro. Contudo, “Os fatos” tem um triunfo: quando Philip Roth o escreveu, o tempo ainda não havia amenizado o impacto que alguns dos acontecimentos narrados tiveram sobre o autor. Portanto, temos uma versão mais crua da realidade que a apresentada em “Roth Libertado”.
Essa crueza está ligada ao coração do livro, que é a relação entre Philip e Josie, sua primeira esposa. Para se ter uma ideia do impacto que esse relacionamento teve na vida do autor, em “Roth Libertado” Claudia Pierpont diz que esse “talvez tenha sido o casamento literário mais dolorosamente destrutivo e mais duradouramente influente desde Scott e Zelda“.
A certa altura, Philip diz que Josie (nome fictício) foi “a melhor professora de escrita criativa” que ele tivera. Filha de pai alcoólatra, mãe impedida de ver seus dois filhos, Josie não “entrou” na vida de Roth: foi Roth quem “entrou” na vida de Josie, abordando-a na rua e convidando-a para tomar um café.
Roth a conheceu quando ela era garçonete de um restaurante. Ele sabia dos dois filhos e sabia que ela era divorciada, informações que colhera com funcionários do restaurante. O que Roth não sabia é que Josie transformaria a sua vida num inferno.
Roth e Josie ficaram ligados por mais de dez anos, ainda que o relacionamento entre eles, contando as idas e vindas, tenha durado menos da metade disso. A ligação se manteve mesmo após o rompimento porque Josie se recusava a ceder o divórcio.
A presença dela foi tão marcante que Roth a transformou em personagem em vários de seus livros, com maior destaque em “Letting Go”, “When she was good” e “Minha vida de homem”. E, assim como é possível dizer que sem Zelda não haveria Scott, é possível dizer que sem Josie não haveria Philip Roth – ao menos não como ambos ficaram conhecidos.
Numa carta dirigida a seu criador ao final de “Os fatos”, Nathan Zuckerman, o mais ilustre protagonista das obras Roth, afirma que Josie “é a heroína deste livro, não de modo agradável”. E é verdade. Assim como os três livros citados no parágrafo anterior provavelmente não teriam existido se Roth não tivesse “forçado” Josie a entrar em sua vida, “Os fatos” também não teria sido escrito.
Mas é claro que “Os fatos” não é apenas sobre Josie e sobre como Roth não conseguiu se desvencilhar dela, mesmo quando teve chance – muito embora esse conflito seja o maior atrativo da obra. É, também, sobre a infância e a juventude de Philip, sobre seus pais e seu irmão, sobre as outras mulheres com as quais se envolveu e seus anos na universidade (que serviram de inspiração para “Indignação”), sobre o início de sua carreira como escritor e como o judaísmo a moldou.
E é, sobretudo, um acerto de contas do autor consigo mesmo. A carta de Zuckerman para Roth é de uma sinceridade brutal, e é o grand finale de “Os fatos”. Um exagerado poderia perfeitamente dizer que Roth escreveu “Os fatos” apenas para poder redigir, através de Zuckerman, essa carta.
Não por acaso, a certa altura Zuckerman diz: “seu instrumento para uma autoevisceração realmente impiedosa, seu instrumento para uma genuína autoconfrontação sou eu”. A mais pura verdade.