Certa vez, Nelson Rodrigues, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, declarou que o escritor e jornalista mineiro Otto Lara Resende deveria ter sempre em seu encalço um taquígrafo – em uma definição rápida e grosseira, alguém que faz anotações rapidamente e de forma abreviada –, para que suas frases geniais fossem registradas e depois vendidas em uma loja.
Isso porque, segundo Nelson, a “grande obra” de Otto “é a conversa”. Mas se a ideia do taquígrafo não pôde ser levada adiante, a recente publicação das cartas de Otto a um de seus maiores amigos, o também escritor mineiro Fernando Sabino, vem ocupar um bom espaço nessa lacuna.
Reunidas no livro “O Rio é tão longe”, editado pela Companhia das Letras no apagar das luzes de 2011, as cartas de Otto Lara Resende fazem o leitor comprovar não apenas o “frasista brilhante” que ele foi – palavras do jornalista e escritor Humberto Werneck, autor do texto de introdução publicado no volume e responsável pelas notas de rodapé: elas também revelam um Otto “endiabrado”, sedento por escrever e receber cartas, sua maneira de conversar à distância.
“O Rio é tão longe” é dividido em quatro partes: a primeira, composta por cartas enviadas de Belo Horizonte entre 1944 e 1945; a segunda, com missivas enviadas entre 1957 e 1959, de Bruxelas, capital da Bélgica e, atualmente, também da União Europeia; a terceira, do Rio de Janeiro, entre 1964 e 1965; e a quarta, de Lisboa, entre 1967 e 1970.
Em suas incansáveis epístolas, Otto relatava – ou, melhor, conversava – não apenas os seus problemas ou dilemas pessoais e profissionais, mas também fazia comentários sobre a situação social, política, cultural e econômica de onde estava, principalmente quando escrevia do exterior, nos países onde trabalhou como adido cultural. É certo que tais comentários compõem um pequeno espaço nas cartas, mas é necessário destacar tal característica. Até porque pode-se passar despercebido por ela, tamanho é o talento de Otto para conversar: algumas de suas cartas são enormes (uma delas ocupa 19 páginas do livro), e o leitor pode precisar tomar cuidado para não ser engambelado pelo mineiro.
Entre seus dilemas profissionais há um que é quase constante: a dúvida entre ficar no exterior ou voltar para o Brasil. Entre os pessoais, há um que o atormenta sobremaneira: a literatura, a sua literatura. Otto tinha o que o psicanalista e escritor Hélio Pellegrino, outro grande amigo seu, “diagnosticara como ‘bibliofobia’, o horror a se ver exposto numa livraria”, esclarece Humberto Werneck em sua introdução.
Além de não querer ser publicado – apesar de algumas vezes, nas cartas, pedir ao amigo Fernando Sabino que publicasse um livro seu –, Otto volta e meia questionava a qualidade de seus escritos. Ao comentar o lançamento da edição inglesa de “O braço direito”, seu único romance, ele diz: “Saiu finalmente a edição inglesa do Braço. Muito bonito o livro, mas me deu uma vergonha! Recebi ontem, passei os olhos nuns capítulos, fiquei com vontade de me esconder, que sujeito chato e triste, sobretudo em inglês, é o meu personagem Laurindo! Será que alguém vai ler essa bosta?”.
Mas as cartas trazem, também, muitas passagens bem-humoradas, a maioria delas devido à espontaneidade com que Otto as escrevia. Nelas, também contava casos engraçadíssimos, como este que ocorreu em Portugal:
“Vindo da embaixada (ou melhor, de um cocktail pela inauguração de uma Exposição sobre Paris), cumprimentei polidamente a porteira do edifício em que moro (pois já moro) e, vendo um gajo à espera do elevador, excedi-me em gentilezas para que o tal entrasse antes de mim. Faz favoire pra cá, faz favoire pra lá, o homem era mais amável do que eu, mas tomei-lhe a porta à força, travei-o do braço e fisicamente o intimei a entrar. Aí é que o homem danou-se e quase me gritou no auge da impaciência: ‘Ora, raios, senhor doutoire, eu sou o porteiro!’”.
Há também espaço para o lírico, como na passagem em que ele narra como gostaria que fosse seu encontro com Fernando Sabino, no fim da longa carta do dia 12 de julho de 1964; para uma epístola poliglota, na carta do dia 14 de maio de 1965, a qual Otto escreve em português, inglês e francês, com alguns trechos em espanhol; para a fúria, quando Otto comenta uma resenha do seu livro de contos “Boca do inferno” feita pelo crítico literário Wilson Martins, na missiva do dia 28 de julho de 1957; e para o poético, no belíssimo “Lembrete do anjo a Fernando Sabino”, que ilustra a capa do livro e antecede as cartas. Curto, emocionado e emocionante, pode-se facilmente referir-se a esse lembrete como uma pequena obra-prima.
Na falta de um taquígrafo a tiracolo ou de um gravador no qual estivessem armazenadas as frases e conversas de Otto Lara Resende, é até possível que esteja nas cartas, como deixa a entender o já referido texto introdutório de “O Rio é tão longe” escrito por Humberto Werneck, o melhor dos “Ottos”. Porque há vários “Ottos”: o missivista, o cronista, o romancista e o contista. Todos já conhecidos das estantes das livrarias, porém um tanto esquecidos nos últimos anos.
Além de publicar “O Rio é tão longe”, a Companhia das Letras colocou nas livrarias uma nova edição – ampliada – do livro de crônicas “Bom dia para nascer”. Em meados de 2012 veio à luz uma nova edição de “A testemunha silenciosa” (novelas). E ainda há mais o que se reeditar de Otto Lara Resende. Dessa forma, o público leitor brasileiro – que, dizem, vem aumentando – poderá decidir qual desses Ottos é o melhor. E, mais do que isso, descobrir – ou redescobrir – todos eles.
* O texto foi originalmente publicado no Terra Magazine em fevereiro de 2012. Para esta republicação, pequenas atualizações foram feitas.