O que escrever sobre um clássico? Já não disseram tudo sobre ele? Bem, na verdade, não. Afinal, não existem leituras iguais. Milhões de pessoas leram “O apanhador no campo de centeio” (trad. de Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster), e cada uma dessas milhões de pessoas fez uma leitura diferente.
No meu caso, a leitura começou há quase dez anos, quando o comprei (02 de abril de 2007; na época eu ainda anotava a data de aquisição – ou recebimento, no caso de compras feitas pela internet – dos meus livros), mas logo foi interrompida por um motivo que, hoje, talvez seja risível: anos antes eu havia tentado escrever um romance e o início dele lembrava o de “O apanhador…”. Para não correr o risco de querer imitar o Salinger, interrompi a leitura imediatamente.
Essa questão da influência e da tentação de imitar um autor me preocupava muito. Hoje, acho que essa preocupação, além de ser uma bobagem, acabou me atrapalhando, porque ler Salinger mais cedo – e outros autores que deixei de ler também por medo de involuntariamente imitá-los – certamente teria contribuído para a minha escrita.
Mas voltemos a “O apanhador no campo de centeio”, que, à primeira vista, pode ser visto como um livro simples, superficial. De fato, pouco depois de finalizar a leitura, postei nas redes sociais o seguinte: “Tinha uma outra ideia dele, principalmente por causa do mito que gira em torno do livro, mas a história é simples – se é que é uma história, está mais para uma digressão, um relato, um fluxo de consciência do jovem problemático Holden Caulfield”. Uma impressão que mudaria à medida que a leitura recém acabada fosse melhor assimilada.
Holden Caulfield, protagonista do livro, é um jovem de dezesseis anos que, três dias antes das férias de Natal do colégio interno em que estuda, decide fugir. Sua principal motivação é o fato de saber que seria expulso devido às suas notas baixas. Ao longo da narrativa, Holden demonstra que seu problema não é cognitivo, intelectual: é psicológico. Ele não consegue se adequar ao colégio. O ambiente, os colegas, os professores: para Holden, tudo é opressivo, tudo o incomoda, e o desenrolar da história mostra que ele não consegue se adequar à sociedade, de um modo geral.
Um dos grandes trunfos do livro é a narrativa em primeira pessoa. A linguagem de Holden chocou muita gente na época – o livro foi publicado em 1951 -, principalmente pelos palavrões que ele utiliza. “O apanhador no campo de centeio” chegou a ser censurado em alguns colégios dos Estados Unidos.
De lá para cá, muita coisa mudou, e hoje os palavrões chegam a ser inofensivos. O que permanece inalterado é o coração do livro, que é o sentimento de inadequação, a dificuldade de se encaixar em padrões e a incapacidade de se comunicar e se relacionar com as pessoas.
No caso de Holden, essas dificuldades o levam ao que podemos concluir como uma espécie de colapso nervoso: ele discute com os colegas por motivos banais; não consegue ter um diálogo coerente, digamos assim, com quem quer que seja; se desentende com uma namorada; e, perto do final do livro, desconfia da orientação sexual de um ex-professor que tenta ajudá-lo (a conversa com o professor Antolini é uma das passagens mais belas do livro, a propósito).
Salinger se ofendia quando alguém perguntava se Holden era louco, e ficava triste quando lia ou ouvia comentários do tipo. Mas é difícil não fazer essa leitura do personagem, mesmo que sua inteligência e perspicácia demonstrem o contrário. Em todo caso, Holden não é mesmo louco. Está “apenas” passando por uma fase.
Para melhor entender “O apanhador no campo de centeio”, recomenda-se ler sobre o livro e sobre Salinger. Sem isso é impossível compreender a obra em sua totalidade. E então, tendo conhecimento das relações entre autor e obra, recomenda-se reler o romance. No Brasil, foram publicadas duas biografias sobre o autor: “Salinger – Uma vida”, de Kenneth Slawenski; e “Salinger”, de Shane Salerno e David Shields. Tenho esta última e posso dizer que ela fornece informações importantíssimas para os leitores.
Nela, os autores reproduzem o texto que Salinger escreveu para o livro. Num trecho, ele diz que “O rapaz é ao mesmo tempo simples demais e complexo demais para podermos fazer qualquer comentário definitivo sobre ele ou sua história”. E talvez esta seja a melhor definição para “O apanhador no campo de centeio”: simples demais e complexo demais. Não à toa, o livro se tornou um clássico instantâneo, continua reverberando até hoje e continuará ressoando por muitas décadas ainda.
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Algumas curiosidades:
– Salinger solicitou à editora que, a partir da terceira edição do livro, sua foto não fosse mais reproduzida; na edição brasileira, não há texto de orelha, nem de quarta capa, nem foto de Salinger. Aqui, o livro é editado pela Editora do Autor, que, até onde sei, não tem, hoje, nenhuma outra obra em seu catálogo.
– Salinger nunca autorizou adaptações cinematográficas ou teatrais de “O apanhador no campo de centeio”. Todas as ofertas que recebeu, algumas delas na casa dos 10 milhões de dólares, foram recusadas (Informação retirada do livro “Salinger”, de David Shields e Shane Salerno.)
– Na época em que “O apanhador no campo de centeio” foi publicado no Brasil, em 1965, a Editora do Autor tinha três sócios: os escritores Rubem Braga e Fernando Sabino, e o advogado Walter Acosta. O título escolhido para o livro foi “A sentinela do abismo”, muito diferente do original, porém bastante fiel à passagem em que Holden fala sobre querer ser um “apanhador” num campo de centeio (a passagem é bastante tocante e prefiro não dar detalhes sobre ela). Por sorte, Salinger havia imposto, depois de traduções bem peculiares do título em outras línguas, a condição de que o título não fosse outro senão a tradução fiel do original: “The catcher in the rye”. (Informações retiradas do livro “Rubem Braga – Um cigano fazendeiro do ar”, de Marco Antonio de Carvalho.)
– Em 2009 o editor sueco Fredrik Colting publicou o livro “60 Years Later: Coming Through the Rye”, uma espécie de continuação de “O apanhador no campo de centeio” sessenta anos depois. No Brasil, o livro foi lançado, em 2010, com o título fiel de “60 anos depois: Do outro lado do campo de centeio”. Antes de morrer, em 2010, Salinger conseguiu fazer com que a venda desse livro fosse proibida nos Estados Unidos. Uma grande ironia, visto que o próprio “Apanhador…” fora alvo de censuras anos depois de publicado.