Tudo começa quando Addie, uma senhora viúva já há vários anos, faz uma proposta ao seu vizinho de décadas, Louis, também viúvo há vários anos:
“Bem, é que nós dois estamos sozinhos. Já há muito tempo. Há anos. Eu me sinto sozinha. E acho que é possível que você também se sinta. Então fiquei pensando se você gostaria de ir para a minha casa à noite e dormir comigo. E conversar”.
Esse é o ponto de partida do belíssimo romance “Nossas noites”, de Kent Haruf (Companhia das Letras, 2017, tradução de Sonia Moreira, 160 págs.). Apesar do nome que remete ao Oriente Médio, Haruf nasceu nos Estados Unidos, na cidade de Pueblo, no Colorado.
A proposta inesperada deixa Louis a princípio sem ação, mas ele aceita. No início, ambos sentem a estranheza de voltar a ter um companheiro na cama, e no primeiro dia Louis chega à casa de Addie pela porta dos fundos, para evitar comentários da vizinhança. Eles moram na pequena e pacata Holt, cidade fictícia criada por Haruf. Ao explicar que chegou pelos fundos porque “seria menos provável que as pessoas me vissem”, Addie responde:
“Eu não me importo com isso. Elas vão acabar sabendo. Alguém vai ver. Venha pela calçada da frente e entre pela porta principal. Resolvi que não vou ficar me preocupando com o que as pessoas pensam. Já fiz isso tempo demais – a minha vida inteira. Não vou mais viver desse jeito. A viela dá a impressão de que nós estamos fazendo alguma coisa errada ou indecorosa, algo digno de vergonha”.
Mas não demora para que as dormidas – e as conversas – se tornem naturais e para que Louis passe a usar a porta da frente (o que acontece já no segundo “encontro”). Assim, vamos conhecendo as histórias de vida de cada um, marcadas por dramas, traumas e frustrações (como, afinal, são as vidas de todos nós, em maior ou menor grau). E esse é um dos pontos mais fortes do livro: a forma como Addie e Louis narram certos acontecimentos de suas vidas. Fatos que, apesar de terem acontecido há muito tempo – 40, 50 anos -, ainda os incomodam.
Não demora, também, para que as pessoas comecem a saber e comentar sobre o casal, como temia Louis, e esse é um dos aborrecimentos pelo qual eles passam. Outro aborrecimento tem a ver com os filhos de cada um. A filha de Louis – com quem ele não tem uma boa relação – não gosta de saber que o pai tem ido passar as noites com a vizinha. E o mesmo acontece em relação a Addie e seu filho, Gene – que também têm uma relação complicada.
Os momentos mais doces e divertidos de “Nossas noites” ocorrem quando Jamie, neto de Addie, vai passar algumas semanas com a avó – a esposa de Gene foi embora e ele não tem condições de criar o garoto sozinho no momento. Louis se aproxima do menino e eles até adotam um cachorro. A relação que nasce entre eles é tocante.
Mas justamente quando Addie e Louis já estão acostumados com Jamie – e Jamie com eles -, quando eles estão vivendo não mais como vizinhos/amigos que fazem companhia um ao outro, mas efetivamente como um casal – essa transição é outro dos pontos altos do livro -, a situação começa a ficar complicada.
O final de “Nossas noites” é, ao mesmo tempo, triste e feliz. E agora, escrevendo sobre o livro e folheando algumas páginas para confirmar cenas e nomes (faz alguns meses que o li), sinto novamente a emoção que senti durante a leitura, emoção que não conseguiria traduzir de maneira satisfatória com palavras.
“Nossas noites” é um livro simples, porém traz situações complexas – os tais fatos que ainda incomodam Addie e Louis, as relações entre eles e os filhos e, claro, a situação de ambos, vizinhos que decidem ser companheiros. É um livro forte, porém de uma delicadeza que impressiona. É um livro alegre, porém melancólico – ou é um livro melancólico que tem um pouco de alegria.
Escrito com uma linguagem direta, objetiva e com uma fluidez espantosa – que a excelente tradução manteve -, “Nossas noites” é um grande livro. Quem puder ler, leia. Vai ser muito difícil se arrepender.
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– O livro de Kent Haruf foi adaptado para o cinema. Protagonizado por Jane Fonda e Robert Redford, o filme, que está disponível na Netflix, perde a força e a naturalidade da obra de Haruf (apesar das ótimas atuações de Fonda e Redford). O romance é muito melhor.
– A editora Rádio Londres comprou os direitos de três outros livros de Haruf: “Plainsong”, de 1999; “Eventide”, de 2004; e “Benediction”, de 2013. “Nossas noites” (“Our souls at night”) foi publicado postumamente em 2015, nos Estados Unidos. Haruf, nascido em 1943, morreu em 2014.