Se as livrarias ordenassem os livros de acordo com os subgêneros literários, talvez os frequentadores desses estabelecimentos presenciassem discussões ásperas entre livreiros.
“Quem disse que ‘O estrangeiro’ é um romance? É uma novela!”
“Não é! É romance, e vai ficar na prateleira de romance!”
“Ah, mas não vai mesmo!”
Felizmente, os livros são organizados em estantes abrangentes: “Literatura Brasileira”, “Literatura Estrangeira”, “Administração”, “Filosofia” etc. Livreiros não precisam divergir entre gêneros literários. Camus vai para “Literatura Estrangeira” e fim de papo (se bem que alguns livros de Camus podem ser guardados na estante de “Filosofia”, mas enfim).
A batata quente da classificação neste ou naquele gênero fica para os acadêmicos, os críticos literários e, às vezes, para resenhistas como este que vos escreve, quando cai em nossas mãos uma obra como “Não está mais aqui quem falou” (Companhia das Letras, 2017, 144 págs.), da escritora Noemi Jaffe.
O livro pode ser facilmente encontrado em qualquer livraria na estante de “Literatura Brasileira” (isso se algum livreiro desavisado não guardá-lo na de “Literatura Estrangeira” por causa do sobrenome “Jaffe”), mas, se houvesse subcategorias, talvez fosse difícil chegar a um consenso.
Isso porque “Não está mais aqui quem falou” é uma reunião de 40 textos dos gêneros mais variados. Há crônicas, há contos, mas também há textos inclassificáveis, como “Um dicionário”, em que a autora lista algumas palavras e dá a elas definições peculiares, como, por exemplo:
“Alegria – Egoísmo generoso“,
“As coisas – Não são sempre assim“,
“Hospital – Lugar onde o doente não deve ofender os médicos“,
“Memória – Ficção“,
“Ódio – À maionese” etc.,
ou “Movimento hipotético de desorientação”, com frases e “orientações” como
“10) Em princípio, gostar. Não gostar, caso necessário, no final“,
“15) O ócio não é um prêmio pelo trabalho realizado“,
“22) Existem almoços grátis” etc.
Há, também, o que poderíamos chamar de “cronicontos”, textos nos quais a autora narra encontros entre personagens reais como Manuel Bandeira e Samuel Beckett, Rubem Braga e Marguerite Duras, Albert Einstein e Dorival Caymmi (sendo, o Einstein do texto, um grande admirador da música do baiano).
O resultado disso é que cada um dos textos de “Não está mais aqui quem falou” é um espanto. Noemi tira da zona de conforto o leitor mais acostumado à literatura tradicional – e isso é ótimo.
Fiquei deliciado com textos como “Diante do Senhor”, em que a autora dá um outro final à história de Abraão e Isaque; o texto sem título que começa com a frase “E, dirigindo-se a Adão, falou”, no qual Deus lista 100 verbos que Adão teria de praticar a partir de então; “Migalhas”, no qual a autora promove um encontro entre Tirésias e Dédalo, dois personagens da mitologia grega; “Como uma gaivota”, onde a escritora Karen Blixen (sob o pseudônimo Isak Dinesen) e a atriz Marilyn Monroe se encontram e têm uma emocionante conversa; e “Uma espécie de bênção”, texto em que a autora evoca a história da Torre de Babel; entre vários outros.
Como escreveu a própria Noemi Jaffe, em texto publicado no Suplemento Pernambuco, “Não gosto da ideia de ‘gêneros literários’. Não sei quem a inventou, mas tenho certeza de que ela só ‘pegou’ porque serve para organizar melhor as prateleiras das livrarias ou porque facilita os catálogos das editoras“. E ela tem razão: é para isso – e também para causar polêmicas na Academia – que servem os gêneros literários.
Para os leitores que apreciam bons livros, o gênero não importa (ou não deveria importar). Importa que ele seja bom, e que seja bem escrito. E qualidade é o que “Não está mais aqui quem falou” mais tem de sobra.