O cliente chegou perguntando por livros sobre a Revolução de 64 lançados recentemente. Lembro de algumas revoluções, como a dos Cravos, em Portugal, e a Revolução de 1989, que deu início à desintegração da União Soviética (confesso que tive de ir ao São Google para confirmar se a lembrança estava correta). E foram elas que me vieram à mente quando ouvi a pergunta. Foi por isso que, sem querer, escapuliu a minha resposta, também uma pergunta: “o Golpe de 64?”.
E foi mesmo sem querer. Pensei que ele pudesse ter se enganado; em vez de “Revolução de 64” ele queria ter dito “Revolução de 89”. Ou mesmo que tivesse dito “Revolução de 64” por descuido, distração, quando na verdade queria ter dito “Golpe de 64”, afinal, este ano o Golpe completa 50 anos, e uma série de livros sobre o tema estão sendo publicados. Mas não. Ele quis dizer “Revolução”, mesmo. O descuidado fui eu, que estou com o Golpe de 64 na cabeça.
Porque, como livreiro, devo estar sempre em cima do muro – ou, melhor dizendo, devo ser “laico” o tempo todo, em todos os aspectos. Não posso criticar autores de autoajuda, muito menos romancistas best-sellers. Minhas opiniões sobre religião, política e futebol, assuntos sobre os quais gosto muito de conversar, devem ficar guardadas apenas para mim. E as opiniões dos clientes, devo ouvi-las e tentar dar um jeito de não prolongar a conversa. Como no caso da cliente que certa vez me confessou odiar índios e desejar que todos eles sejam mortos – eu saí de fininho, bastante constrangido -, ou do cliente que acredita que o PT está planejando implantar uma ditadura do proletariado no Brasil.
Quem dera que o proletariado pudesse ditar alguma coisa. O proletariado é somente um pobre diabo que, salvo algumas exceções – quando faz uma grevezinha e consegue alguma melhorazinha no salário ou nas condições de trabalho -, aguenta tudo – desaforo de patrão, de cliente e precárias condições de trabalho (quando é o caso) – calado. E aguentar calado não é fácil. Essas coisas são como cupim, como ácido, corroem tudo por dentro.
Mas voltemos ao assunto.
Perguntei “o Golpe de 64?” e logo depois me arrependi. Antes de terminar de dizer “sessenta e quatro” eu já havia me arrependido. De fato, me arrependi no momento em que comecei a dizer “o Gol…”, mas não havia mais como voltar atrás, as palavras já haviam saído da minha boca. Curioso: quando realmente preciso, o pensamento – e a fala – não vem tão rápido.
O cliente, que pareceu se aborrecer com a minha pergunta, esbravejou “Revolução! Revolução, porque eu sou a favor daquilo lá”. Assim mesmo: “daquilo lá”. Ele é a favor daquilo lá – a propósito, está aí uma boa expressão para se referir ao Golpe: “aquilo lá”. Passa a ideia de algo nojento, de uma coisa mesquinha, concordam?
Nesse momento, caí em mim, e percebi a besteira que havia dito. Eu não poderia ser contra “aquilo lá” naquele momento. Eu tinha que tentar descobrir qual livro ele estava procurando – ele perguntou pelos livros sobre “aquilo lá”, mas estava procurando um específico. Mostrei um, mostrei outro, não era nenhum deles, e o cliente, já aborrecido por estar sendo atendido por alguém que chama “aquilo lá” de “golpe”, começou a se despedir, dizendo que depois procuraria em outro lugar. E então me lembrei de um título que havia acabado e que poderia interessá-lo: “Ditadura à brasileira”, de Marco Antonio Villa.
Entre outras coisas, o historiador rio-pretano defende que “aquilo lá” “não foi uma ditadura de 21 anos. Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 – até o Ato Institucional n.º 5 (AI-5) -, com toda a movimentação político-cultural que havia no País. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições diretas para os governos estaduais em 1982. Que ditadura no mundo foi assim?“. O trecho citado não é do livro, mas de um artigo do historiador publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, em 19 de fevereiro de 2014.
Era esse o livro que o cliente estava procurando.