“Fluam, minhas lágrimas, emanem da fonte!/ Deixem-me, para sempre exilado, a lamentar;/ Onde canta sua infâmia a ave negra e triste,/ Deixem-me viver com meu pesar.” (Philip K. Dick)
Jason Taverner é um famoso cantor e apresentador de tevê que vive em Los Angeles. Certo dia (certa noite, na verdade), após a exibição de mais um programa, Taverner e Heather Hart, sua namorada, também uma cantora famosa, saem em seu carro voador rumo à Suíça, onde pretendem descansar durante alguns dias.
Minutos depois de decolarem, Taverner recebe a ligação de Marilyn Mason, uma de suas ex-amantes. Alguns meses antes, Taverner havia conseguido dois testes para Marilyn, que não passou em nenhum deles. Agora, ela queria vê-lo com urgência, ameaçando cometer suicídio caso ele não a atendesse.
Pressionado, Taverner cede à chantagem de Marilyn e vai encontrá-la. Lá chegando, descobre que sua ex-amante havia preparado uma armadilha: ela atira em Taverner uma criatura que começa a invadir o seu corpo. Ele consegue se desvencilhar de parte da criatura, mas os resquícios dela penetram em seu peito e o fazem desmaiar.
Algum tempo depois, ele acorda no corredor de um hospital; está sendo levado às pressas para a sala de cirurgia – Heather Hart conseguira resgatá-lo. E então Taverner apaga novamente.
Quando acorda, o grande, o famoso, o inabalável Jason Taverner está num quarto de hotel vagabundo. Seu primeiro impulso é ligar para Al Bliss, seu empresário. E, de fato, faz a ligação, mas Bliss não o reconhece. Em seguida, tenta falar com Bill Wolfer, seu advogado, que não está no escritório. Ele pergunta à recepcionista se ela o conhece, se assiste a seu programa. Ela, insegura, tergiversa.
Depois de algumas reflexões, Jason percebe que aconteceu com ele o impensável: apesar de saber quem é – ou de achar que sabe -, ele não existe mais para os outros. Isso fica mais evidente depois de notar que está sem seus documentos. Jason decide então ligar para o centro de controle de registros nascimento do seu estado, Iowa, e perguntar se está nos arquivos.
Não está.
É assim que se inicia o romance “Fluam, minhas lágrimas, disse o policial” (Editora Aleph, 2013, 256 págs., trad. Ludimila Hashimoto), ficção científica de Philip K. Dick, reconhecidamente um dos maiores nomes do gênero.
O desenrolar da trama é óbvio: Taverner tenta descobrir o que aconteceu e recuperar a sua vida. O que não é tão óbvio é a maneira como K. Dick narra a história. Apesar de haver uma forte presença de elementos futuristas – os carros voadores, chamados quibbles, e uma a nova ordem que controla a sociedade de maneira rígida, entre outras coisas -, “Fluam, minhas lágrimas…” surpreende leitores neófitos do gênero pelo seu lirismo.
Enquanto Taverner vai de um lado para o outro tentando descobrir o que aconteceu, há discussões sobre fama, poder, amor e quem somos – e quem desejamos ou não desejamos ser. Para quem, como eu, não está acostumado com esse gênero literário e espera encontrar, em ficções científicas, mais aventura que discussões filosóficas, é uma grande surpresa.
Vale também destacar as personagens femininas, outro ponto forte do livro. Embora somente apenas uma delas dure até o final, as mulheres que aparecem na vida de Taverner são intensas e trazem consigo bons conflitos, que terminam refletidos ou causando reflexões no protagonista, além de serem mulheres as duas personagens que primeiro o reconhecem, acontecimentos fundamentais para a trama.
Por experiência própria – devo ter lido quatro ou cinco ficções científicas na minha vida -, “Fluam, minhas lágrimas, disse o policial” é um excelente ponto de partida para leitores que nunca leram nenhuma ficção científica mas têm curiosidade pelo gênero. Mais que isso: “Fluam, minhas lágrimas…” é uma obra para todo aquele que gosta de boa literatura.
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– Apesar de ter sido escrito em 1974, a trama de “Fluam, minhas lágrimas…” se passa apenas 14 anos à frente, em 1988. Pode parecer estranho um autor de ficção científica vislumbrar para tão perto uma evolução tão grande como a de carros voadores e uma mudança tão profunda na ordem mundial como a exposta no livro, mas esse é apenas um detalhe, e todo escritor tem o direito inalienável da licença poética.
– Várias histórias de K. Dick foram adaptadas para o cinema. Assisti a algumas dessas adaptações e as que mais gostei foram: “Minority report”, “Homem duplo” e “Os agentes do destino”.
– A propósito, os direitos de adaptação de “Fluam, minhas lágrimas…” foram comprados por uma produtora em 2004. Fica a torcida para que este projeto saia finalmente do papel. Se bem realizado, será com certeza um grande filme. Um bom ator para interpretar Taverner? Tom Cruise, com certeza.