“Continuo brincando de não ser cego, continuo comprando livros; continuo enchendo minha casa de livros. Um dia desses me ofereceram uma edição da Enciclopedia Brockhaus de 1966. Senti a presença daquela obra na minha casa, senti essa presença como uma espécie de felicidade. Lá estavam os vinte e tantos volumes impressos numa letra gótica que não tenho condições de ler, com os mapas e gravuras que não tenho condições de ver; e o fato era que os livros estavam lá. Eu sentia uma espécie de gravitação amistosa que vinha deles. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que nós, homens, temos.”
As palavras acima foram escritas – na verdade, ditadas – pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, e fazem parte do livro “Borges oral & Sete noites” (Companhia das Letras, 2011). Elas me perseguem há anos, pois é exatamente assim que me sinto: como um cego em relação aos livros que já possuo e como um dependente dos livros que desejo ter. Afinal, possuir centenas de livros e não lê-los é uma espécie de cegueira. E desejar livros que não serão lidos é uma espécie de doença, um vício que precisa ser tratado – ou ao menos controlado.
É sobre ser dono de uma quantidade absurda de livros que Jacques Bonnet, editor e tradutor francês, escreve em “Fantasmas na biblioteca – A arte de viver entre livros”, livro recém-lançado no Brasil pela editora Record (160 págs., tradução de Jorge Coli, R$ 29,90).
Bonnet deixa a entender que tinha, na época em que escreveu o livro – publicado em 2008 na França -, mais de 20 mil livros. “Cheguei a ter um banheiro com as paredes atapetadas de prateleiras, o que impedia o uso do chuveiro e obrigava a tomar banho com a janela aberta por causa da condensação; e também em minha cozinha, o que proibia certo número de alimentos com cheiro particularmente impregnante. Como muitos de meus confrades, demorei a ter os meios imobiliários compatíveis com minhas ambições bibliofágicas!”, conta.
Além dos óbvios problemas de espaço que uma grande quantidade de livros traz – nada que incomode muito o proprietário, diga-se -, há uma outra questão que diverte – ou tira o sono? – os donos de quantidades consideráveis de livros: como organizá-los. Por ordem alfabética de título ou autor? Por nacionalidades? Por cores de lombadas? Bonnet enumera as possibilidades e os “poréns” de cada uma delas para, no final, explicar como funciona a sua organização.
Mas estas são, basicamente, as duas questões práticas abordadas por Bonnet. Apesar de tratar de um objeto concreto (o livro impresso), “Fantasmas na biblioteca” versa mais sobre assuntos abstratos. Em um dos capítulos, por exemplo, o autor disserta sobre como alguns títulos foram parar em sua biblioteca; em outro, fala sobre não existir possibilidade de ler todos os livros que tem; mais adiante, dedica algumas páginas para diferenciar os livros de textos dos livros de arte; e, perto do fim, escreve sobre “personagens reais e personagens fictícios”. Os primeiros seriam os imaginários, os protagonistas das obras literárias, e os segundos seriam os seus criadores, ou seja, os escritores. Para Bonnet, é muito comum sabermos mais sobre os personagens dos livros que lemos – ou até dos que não lemos! – do que sobre aqueles que os criaram.
Composto por 9 capítulos curtos, “Fantasmas na biblioteca” é uma excelente diversão para os leitores e compradores inveterados de livros. Ou pelo menos foi divertido, para mim, ver alguém “falando” sobre como lidar com dezenas de milhares de livros, enquanto que eu às vezes fico angustiado com meus mil e poucos – ou mil e tantos? não sei, vou fazer uma contagem mais acurada em breve – volumes.
O livro de Bonnet não deixa de ser, também, uma declaração de amor aos livros impressos, ainda mais agora, quando é possível reunir milhares de títulos em um dispositivo eletrônico. No penúltimo capítulo, ele dedica algumas linhas ao futuro das obras impressas, e sua aposta é a de que pelo menos os livros de arte não estão ameaçados, o que é quase um consenso atualmente.
“Fantasmas na biblioteca” só tem dois problemas: o primeiro, alguns deslizes de edição, como a não tradução de todos os títulos citados em francês ou a falta da informação de que algumas das obras citadas pelo autor foram editadas no Brasil. O segundo, é ser curto. Ninguém reclamaria se Bonnet tivesse prolongado a conversa um pouco mais.