A entrevista que você lerá a seguir, apesar de inédita, está pronta há quase 1 ano. A intenção era publicá-la na revista eletrônica de contos Outros Ares, editada por mim e pelo jornalista, escritor e tradutor Marcelo Barbão. Por questões de tempo – tanto eu quanto o Barbão, felizmente, passamos a trabalhar mais ainda de 2012 para cá -, precisamos deixar a Outros Ares de lado, ao menos temporariamente.
Ivan Angelo, mineiro de Barbacena, nasceu em 1936. Foi criado em Belo Horizonte e em 1965 trocou a capital mineira pela cidade de São Paulo. Vencedor de dois prêmios Jabuti com dois romances – “A festa” e “Amor?”, em 1976 e 1995, respectivamente -, é de crônicas o livro mais recente do autor. “Certos homens” foi publicado no final de 2011, pela editora Arquipélago, e reúne textos publicados na revista Veja São Paulo (além de um inédito e outro publicado no jornal mineiro “O Tempo”).
Em uma das perguntas, digo que é quase impossível identificar alguma influência nas crônicas de “Certos homens”. Enquanto lia o livro, o único autor que me vinha à mente como possível influência, em alguns textos, foi Vinicius de Moraes, uma das referências de Ivan, como você poderá ver mais adiante. Esse estilo muito próprio que tem o autor – aliás, uma marca registrada dos grandes cronistas, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e, em atividade, Humberto Werneck, estes últimos três também mineiros – é um dos grandes trunfos do livro. Os outros o leitor poderá descobrir lendo a obra, algo que recomendo com veemência.
Vamos começar com uma pergunta tradicional: como e quando você começou a escrever? Em qual gênero você arriscou suas primeiras linhas? Chegou a cometer poesia?
Quem se torna escritor começa a escrever quando começa a ler. É o encanto com aquilo, é o recriar aquilo na cabeça, é o recontar aquilo para as pessoas, tudo isso são formas ainda incipientes do escrever. Depois, quando aprende a emendar e costurar palavras, tenta imitar, encantar também. Se o camaradinha insiste, persiste, se aplica, capricha, e consegue alguma aprovação, ou consegue o olhar amoroso de alguma coleguinha, está encaminhado mais um escritor. As primeiras coisas que escrevi, ainda nessa fase escolar, foram versinhos, comentários, alguma historinha. Toda essa produção era “postada”, como se diz hoje do material que é colado na internet, nos quadros murais escolares. Algumas quadrinhas eram entregues por mensageiras a pessoinhas interessadas ou desinteressadas. Lia muito, de tudo, muita mistura. Com o tempo, lendo poetas como Gonçalves Dias, pois eu queria contar histórias em versos, descobri que poesia era muito difícil e bandeei definitivamente para a prosa de ficção. Escrevia, escrevia, até que, aí pelos 17 anos, compreendi que literatura era outra coisa e rasguei minhas obras completas. Essa fase de aprendizagem está mais ou menos narrada em duas crônicas que estão no livro “Melhores crônicas”, da Editora Global: uma delas é “O comprador de aventuras”, a outra é “O comprador de palavras”. Essas duas crônicas estão também num livrinho da Ática, “O comprador de aventuras e outras crônicas”.
Lendo “Certos homens” é quase impossível notar alguma influência em seus textos; ou seja, você tem um estilo muito seu. Mas alguns autores devem tê-lo influenciado – ou não? Em caso positivo, quais são suas referências literárias?
Ah, por certo que influenciaram. Como disse há pouco, a gente começa imitando. É como andar ou falar: imita-se, e, no imitar, se aprende. Conhecem-se as dificuldades, e alguns procuram as facilidades, mas outros preferem o desafio das dificuldades. Gosto das dificuldades, e digo isso sem pretensão, digo como um jogador que não acha estímulo em jogos fáceis. Entre as influências posso contar uma quantidade de poetas. Nos meus anos de formação, foram as leituras mais marcantes, mais ligadas à lida com as palavras. Ficcionistas distraem muito a gente, os poetas exigem mais atenção. Posso enumerar dessa época um mestre da vida inteira, Carlos Drummond de Andrade, e mais Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa, alguns românticos como Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu, alguns parnasianos como [Olavo] Bilac, Machado [de Assis], Raimundo Correia [um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras]. Lia ficção, também, mas a poesia é que me enchia as medidas. De prosa, não há como escapar de Machado de Assis, ele nos persegue. Escritora moderna que me maravilhou pelo estilo, porque das histórias nem me lembro direito, foi Clarice Lispector. Escrevi um conto imitando-a, “Menina”, está por aí em antologias. Devo ter sofrido alguma influência de poetas e ficcionistas de língua inglesa, modernos, que lia bastante, aí já na fase de aprimoramento da escrita, digamos. Mas foram tantas as leituras prazerosas e exemplares que fica impossível destacar alguém. Como diz Drummond, no poema “Resíduo”, “de tudo fica um pouco”.
Atualmente, com as mais diversas ferramentas de publicação virtual e o aumento da autopublicação ou da publicação por pequenas editoras, a sensação é de que a quantidade de escritores é muito alta, sendo que esse número é inversamente proporcional à qualidade do que é publicado. Por outro lado, com a avalanche de livros publicados, muita coisa boa acaba ficando escondida, não tem a chance de chegar a uma quantidade maior de leitores. Como você vê essa situação?
Que há gente demais eu concordo, mas sobre a qualidade eu não saberia dizer, porque não dá acompanhar tudo que sai. Toda semana tem alguém me indicando um autor, pego pra ler, gosto, e é uma descoberta tardia, coisa que eu devia conhecer há algum tempo. É bom ter amigos leitores vorazes que vão indicando coisas para a gente, livros que deixamos passar por falta de leitura dos indicadores. Quem tem tempo para acompanhar tanta coisa? Acho até bom que haja tanta oferta, eu é que deveria ser mais aplicado no acompanhamento das novas obras que têm realmente valor. É bem verdade que muita obra conceituada não corresponde, fica devendo. Se traduz muita bobagem, e a mídia do entretenimento aplaude, confundindo ainda mais o interessado. A venda vira critério de valor, e isso é ruim para quem está começando, o critério da vendagem aponta rumos errados. Os editores, ocupados com os best-sellers, ficam sem tempo para trabalhar seus melhores autores, aqueles que movimentam a literatura e não a caixa registradora.
Vários autores mineiros de gerações anteriores à sua adotaram o Rio de Janeiro como lar. Tempos depois, alguns da sua geração escolheram São Paulo, que se tornou o talvez maior centro cultural do país. Em que essa mudança de ares pode influenciar no trabalho de um escritor?
Acho que não é o lugar onde se vive que melhora a literatura de alguém, mas sim o trabalho com a linguagem e com os temas. A mudança de ares pode até atropelar o escritor, pelas exigências de trabalho e lazer que as metrópoles impõem. A boa influência é alargar a visão, ampliar a paisagem, absorver novas linguagens artísticas. Geralmente quem muda para um grande centro procura é melhores condições de trabalho, salários mais justos, mais oportunidades. Desse ponto de vista, e só dele, São Paulo leva vantagem.
Você, que também é contista, compartilha da opinião de que o conto é um gênero menosprezado no Brasil? Se sim, arriscaria dizer por que isso acontece?
O conto, que hoje está em baixa, já foi o queridinho das editoras, três décadas atrás. Foi o tempo dos “contistas mineiros”, que a imprensa ironizava. Depois voltou o romance, a autoajuda atropelou todo mundo, biografias e história entraram com força há uns quinze anos, e agora vemos uma presença forte da crônica, inclusive nos livros didáticos. Essas ondas fazem parte dos marketings que se sobrepõem ou se sucedem. Nos Estados Unidos foi a mesma coisa, houve a época dos grandes contistas dos anos 40, 50 e 60, [Ernest] Hemingway, [William] Saroyan, [F. Scott] Fitzgerald, [Truman] Capote, Carson McCullers, Dorothy Parker, época das grandes revistas mensais e trimestrais. Tenho a impressão de que o conto volta um dia desses, na esteira de alguns sucessos.
Você é cronista da Veja São Paulo há mais de 10 anos. Houve alguma ocasião, durante todo esse tempo, que você se viu sem assunto? Se sim, como resolveu esse problema? E o que faz um cronista? O que, em sua opinião, é necessário para ser um bom cronista?
Todo cronista que trabalha com data marcada está sujeito a isso. Procuro me defender, mantendo um bom banco de ideias e de crônicas esboçadas. Isso ajuda, nos socorre quando a mina de assuntos que é a sociedade nos parece sem sal. Um cronista precisa estar antenado não exatamente com os fatos da sociedade onde ele atua, mas com os sentimentos. Se paira no ar um bem-estar, algum otimismo, o cronista não deve tocar seu bandolim fora do tom. Tirante isso, tem de dar o melhor de si na qualidade do texto, explorar os bons recursos da língua, tem a obrigação de seduzir seu leitor, procurar mantê-lo entretido e encantado com suas habilidades, como faz um mágico. Pode falhar, mas tem de tentar.
Fala-se muito de baixas vendas, pouco investimento nacional, pouca divulgação a escritores locais e baixa escolaridade – fatores que juntos ou separados formam o “problema” da literatura brasileira atual. Antes de tudo, a literatura tem problemas? Quais são os principais, na sua opinião, e quais seriam as soluções?
Vamos separar o livro e a literatura. O livro vai muito bem, nunca se editou tanto. Tem editora que edita um livro por dia. As livrarias são agora megalivrarias. Bancas de jornais, estações de metrô, cafés, rodoviárias e supermercados vendem livros. Bibliotecas e escolas públicas de todo o país recebem livros de graça. Vendem-se livros dos mais caros, luxuosos mesmo, e livros baratíssimos. Os sebos de todo o país estão organizados sob o guarda-chuva da Estante Virtual e vendem para qualquer parte do Brasil, com entrega em casa, bonitinho e direitinho. Agora, literatura sempre foi artigo de uma pequena elite, e digo elite no sentido de elite intelectual, não socioeconômica. O país cresceu economicamente, e esperava-se que crescesse proporcionalmente a massa de leitores de literatura. Isso não aconteceu, e decepciona os escritores da arte literária. Mas não decepciona os negociantes do livro, que estão bem satisfeitos. Um consolo é que isso acontece no mundo inteiro. Como melhorar o panorama para o nosso lado, o lado dos escritores? Com educação e leitura, educação e leitura, educação e leitura…
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