Escrever sobre o escritor carioca Carlos Heitor Cony é um desejo que venho nutrindo há alguns meses, desde quando me dei conta de que nunca dediquei um mísero texto sobre algum de seus livros. O que é estranho, se formos levar em conta o fato de que, no início de minha vida como leitor, Cony foi um dos autores que mais li.
Lembro que, em um curto espaço de tempo, lá pelos idos de 2002, fui arrebatado por quatro de seus livros: “Tijolo de segurança”, “Pessach: a travessia”, “O piano e a orquestra” e “Antes, o verão”. Deles, este último foi o que mais ficou marcado em minha memória. Não em detalhes, que o tempo apagou, mas em sensações, cenas e vagas lembranças. Pensei, então, que seria uma boa ideia reler “Antes, o verão”.
Nele acompanhamos um ano e meio na vida de Luís, um advogado de 40 anos que, no início da história, está em Cabo Frio com a esposa, inaugurando a casa de praia recém-construída. A primeira semana daquele verão seria apenas dele e de Maria Clara. Os filhos, Sérgio e Fernando, chegariam depois. Os primeiros dias, para utilizar um chavão, reacendem o fogo da paixão no casal, e eles se desejam e se consomem como há muito não faziam. “Que que se passa com ela?”, pergunta-se Luís, surpreso com as vontades da esposa.
Maria Clara vai buscar os filhos e, quando retornam, não são três, mas quatro. Os rapazes convidam um amigo para passar o verão com eles, e isso incomoda Luís, que desejava ter apenas a família ao seu lado, ao menos naquele primeiro veraneio. Fato aparentemente insignificante, a presença desse intruso marca, sem que ninguém saiba, o início de um fim.
Ao longo do livro, o narrador entrega ao leitor peças de um quebra-cabeça que podem ou não se encaixar – isso fica a critério de cada um. A primeira peça vem antes do começo do romance, em um prólogo que alterna trechos de uma carta com a narrativa de um assassinato por atropelamento. As outras partes desse quebra-cabeça podem não parecer importantes, mas ao final da leitura tudo se encaixa perfeitamente – caso queira o leitor, é bom lembrar. Porque “Antes, o verão” não é livro de apenas uma interpretação. Da mesma forma como se discute até hoje se Capitu traiu Bentinho (se você não entendeu é porque ainda não leu “Dom Casmurro”, de Machado de Assis), Cony não afirma nem nega uma suposta(?) traição em seu romance. Caso ela tenha acontecido, tudo faz sentido. Mas, se ela não passar de mera paranoia, tudo faz sentido, também.
Porque seus protagonistas são dúbios. Luís, por exemplo, orgulhoso que é, deseja manter distância do sogro rico. Porém, importa-se com o que o pai de Maria Clara pensa dele e parece fazer de tudo para provar que é também um homem bem-sucedido, dentro de suas possibilidades, é claro. Maria Clara, por sua vez, sempre apoia o marido, mas parece comportar-se de outra maneira diante do pai, o que talvez explique a constante a animosidade entre ele e Luís.
Outro aspecto interessante é o amor de Luís e Maria Clara. Ou a falta de. Em alguns momentos, a sensação é que eles se amam. Em outros, que eles se acomodaram, e estão juntos apenas “por estar”. Falando especificamente de Luís, que é quem o narrador acompanha ao longo do livro, há um trecho que o define muito bem: “Há insensibilidade dentro dele, e percebe que adquiriu estranhas, indesejadas possibilidades de luta e perseguição, ainda que a luta seja apenas para perseguir o nada”.
Publicado em 1964, “Antes, o verão” é um romance relativamente curto – na edição de 2007, da Alfaguara, são menos de 198 páginas -, mas forte. A economia de palavras é inversamente proporcional à sua qualidade. Um livro que, cinquenta anos depois, mantém o seu vigor. Prova irrefutável do enorme talento de seu autor.
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* Carlos Heitor Cony foi um dos autores brasileiros que mais escreveu contra a ditadura logo no início da ditadura. Sua coluna, no jornal Correio da Manhã, foi um dos palanques mais barulhentos da imprensa brasileira, naquele fatídico ano – até porque a grande maioria dos jornais apoiou o Golpe. Os textos de Cony deram origem, em 64 mesmo, ao livro “O ato e o fato” (editado por Ênio Silveira em sua Civilização Brasileira), que será relançado este mês pela Nova Fronteira, editora que desde o final de 2013 detém os direitos de publicação de toda a obra do autor.
* No último 28 de março, Cony foi um dos entrevistados do programa Globo News Literatura. Para assistir ao programa, é só clicar aqui.