O conto brasileiro tem tantas grandes referências que, por mais esforçado que seja o leitor de contos no Brasil, é quase impossível não haver lacunas de leituras nesse gênero.
Posso citar, sem esforço de memória ou pesquisa, os clássicos Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio, passando por Graciliano Ramos, Fernando Sabino, Murilo Rubião, Clarice Lispector, Osman Lins, J.J. Veiga, e chegando a Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Lygia Fagundes Telles, Luiz Vilela, Ronaldo Correia de Brito, Menalton Braff e Antonio Carlos Viana (que nos deixou antes da hora).
(É evidente que faltam, nessa lista, vários outros nomes importantes, tanto do passado quanto do presente.)
Começo dizendo isso para tentar justificar uma de minhas lacunas literárias: até pouco tempo eu não havia lido nada de Sérgio Sant’Anna, um dos maiores contistas brasileiros.
Nascido em 1941, Sant’Anna é um dos mais respeitados e premiados autores tupiniquins. Segundo a orelha de sua obra mais recente, “Anjo noturno” (Companhia das Letras, 2017), o autor venceu o prêmio Jabuti quatro vezes, o troféu APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) três* vezes, e uma vez o prêmio da Biblioteca Nacional.
Publicado em setembro deste ano, “Anjo noturno” traz nove narrativas, algumas ficcionais, algumas memorialísticas. E são estas últimas que mais se destacam. Em “A mãe”, “A rua e a casa” e “Amigos”, que ocupam um terço do livro, o autor compartilha com o leitor memórias sobre a sua mãe, sua família, seus relacionamentos amorosos e algumas de suas melhores amizades.
Através delas, quem nada sabe sobre Sérgio Sant’Anna passa a conhecer intimamente o autor e a influência que episódios biográficos tiveram sobre sua obra, e quem já o conhece fica a par de maiores detalhes acerca de sua vida.
Entre as ficções, a que mais se destaca é “Talk Show”, narrada pelo personagem Célio Andrade, escritor convidado a participar, como entrevistado, do programa de Edwina Sampaio, apresentadora com uma longa carreira na televisão aberta e que agora tem um talk show num canal de TV a cabo.
São três as tensões desse conto: o duelo entre entrevistadora e entrevistado, dança mezzo provocadora mezzo amistosa de perguntas e respostas; uma atitude nada convencional do entrevistado que deixa todos – entrevistadora, produção e plateia – boquiabertos -; e a situação de outra convidada do programa, a cantora Luísa Monteiro, jovem talento da MPB que está tentando se recuperar do alcoolismo e das drogas.
Valem ser mencionados, também, os contos “Um conto límpido e obscuro” e “O conto fracassado”. O primeiro é sobre um personagem que recebe a visita de uma amiga com quem tivera um relacionamento amoroso; o desfecho da história, uma das mais breves do livro, nos faz supor que o protagonista é também um escritor. Já o segundo é sobre o que nos diz o título: um conto fracassado, que não se completa, não se escreve – ou pelo menos não se escreve da maneira que desejaria o seu autor.
“O conto fracassado” é a narrativa que encerra “Anjo noturno”, e, nele, Sant’Anna faz referências a episódios narrados nas histórias que o precedem – desde referências sutis, como no trecho “Que embaraço, meu Deus, um homem de sessenta anos, o contista, observando em suas caminhadas os bebês em seus carrinhos e os invejando, desejando ser um deles, com uma jovem mãezinha a embalá-lo e dar-lhe o seio” (que remete a um episódio de “Talk Show”), às mais escancaradas, como no trecho “No conto fracassado o contista diante do túmulo imaginário (pois nunca visitou o túmulo real) da antiga amante em Belo Horizonte (que remete a um episódio narrado em “Amigos”).
Com uma escrita límpida mas por vezes obscura, caso dos contos “Augusta”, “História de um pensamento” e “Uma peça sem nome”, no sentido de que essas narrativas são mais densas, herméticas e cifradas que as outras, Sérgio Sant’Anna entrega uma obra poderosa que sequestra o leitor para um mundo em que as fronteiras entre ficção e autobiografia não são nem límpidas, nem obscuras, mas quase invisíveis.
(*Essa nota biográfica já está desatualizada, pois com “Anjo noturno” Sérgio Sant’Anna conquistou, pela quarta vez, o troféu APCA na categoria “Contos/Crônicas”.)