* Aproveitando esse momento pouco produtivo, no que se refere à escrita, e o fato de eu estar vendendo alguns livros, decidi publicar a resenha que fiz, há alguns anos, de “Os exilados de Montparnasse”, que está à venda [atualização: o livro foi vendido]. O texto foi publicado no blog do “Ideias e Livros”, caderno de cultura do Jornal do Brasil. Mantive o texto exatamente do jeito que foi publicado, sem corrigir imperfeições ou fazer atualizações.
“Como a maioria dos escritores, Scott Fitzgerald tem suas receitas para cativar a página em branco. Em Paris, ele se levanta às onze horas, mas só começa a trabalhar às cinco da tarde. Pretende escrever até as três da manhã. Mas passa a maior parte das noites fora, fazendo a ronda dos bares e dos botequins, e perde, ao longo das horas, todo o self-control. Chega uma noite ao New York Herald Tribune em avançado estado de embriaguez, precipita-se para o escritório dos redatores, joga fora o texto pronto para a composição, rasga-o, cantando aos berros, e exige que os jornalistas façam coro com ele, até o momento em que cai, desacordado.”
É assim, com frases predominantemente curtas, rápidas, que Jean-Paul Caracalla narra, em “Os exilados de Montparnasse”, as peripécias e os dissabores de uma porção de escritores, pintores, editores, livreiros, músicos e intelectuais de diversos países que viveram em Paris entre 1920-1940.
A quantidade de gênios convivendo juntos era assustadora. Não raro ocorria algum desentendimento entre alguns deles; culpa, na maioria das vezes, dos egos inflados e de algumas doses de álcool a mais.
Um tanto diferente de outros livros sobre o mesmo assunto, “Os exilados de Montparnasse” tem uma série de detalhes e pormenores históricos que isentam o autor de tomar partido de certos artistas ou grupos. Além disso, ajudam o leitor a situar-se no tempo e no espaço. Certamente ninguém será capaz de escrever um livro que reúna todas as informações, fatos e personalidades que povoaram a Paris daqueles anos, mas com certeza “Os exilados de Montparnasse” tem seus méritos e peculiaridades, coisas que o tornam documento único e essencial para compreender melhor aquela época. Exemplo disso é a atenção que Caracalla dá a Robert McAlmon, escritor e editor norte-americano, nome pouco conhecido entre os literatos brasileiros que, entre outras coisas, publicou trabalhos de Gertrude Stein e Ernest Hemingway quando estes ainda não eram quem são hoje.
Naqueles anos, Paris era uma festa (para fazer um trocadilho com o título de Paris é uma festa, de Hemingway), mas não apenas isso. Muitos escritores – na verdade, a grande maioria deles – passavam dificuldades financeiras por lá, apesar do câmbio favorável (o dólar valia cinquenta francos!). Essas agruras têm participação tanto na quantidade de obras escritas – havia muitas revistas para onde escrever e elas pagavam pelos escritos – quanto na qualidade – é óbvio e ululante que é nas crises que surgem as obras mais marcantes. Nas páginas de “Os exilados de Montparnasse” temos uma bela amostra de como sofreram e suaram escritores como Henry Miller, Scott Fitzgerald, a própria Gertrude Stein e também Hemingway, entre outros tantos. Alguns em maior, outros em menor intensidade, todos tiveram sua cota de pobreza e sofrimento nas ruas de Paris.
Mas engana-se quem pensa que dessas dificuldades originava-se a humildade, a modéstia. A verdade é que, pelas histórias contadas por Caracalla, quanto mais difícil era a vida do escritor, mais ele tinha seu ego inflado. Então, para quem não sabe, o grande Ernest Hemingway se revela um verdadeiro canalha, ao não creditar a Fitzgerald melhorias feitas em “O sol também se levanta”, para citar um “delito leve”; Fitzgerald é, na verdade, um pobre-diabo que tem de lidar com a fraqueza pela bebida e com uma esposa esquizofrênica; ficamos sabendo que James Joyce foi um oportunista sem-vergonha, que depois de ter seu “Ulysses” publicado pela misericórdia e graça de Sylvia Beach, fundadora da lendária livraria Shakespeare & Co., resolve “tirar” Sylvia do negócio, justo ela, que arriscou o próprio bolso para editar o livro e ainda por cima teve de aguentar todos os chiliques de Joyce no processo de edição e revisão da obra.
Havia naqueles anos um romantismo que foi sendo perdido, com o passar do tempo. É verdade que de vez em quando vemos alguns lampejos daquele idealismo, daquela vontade de fazer arte não pela arte ou por dinheiro, mas por amor e por diversão. Podemos até listar alguns exemplos recentes no Brasil, como a editora Amauta, que publicou e distribuiu gratuitamente a coleção Muro de Tordesilhas, com contos de autores latino-americanos; como a Edições K, um projeto que uniu escritores de várias partes do Brasil numa espécie de banda de rock literária; ou como a editora Livros do Mal, de Daniel Galera, Daniel Pellizzari e companhia. Mas nada se compara àquelas décadas em que livros como “Ulysses” e “Trópico de Câncer” eram censurados nos Estados Unidos e mesmo assim chegavam às mãos dos leitores norte-americanos, em operações de entrega dignas de agentes secretos. Ou às tantas editoras que eram criadas, mesmo com dinheiro parco, para publicar livros que certamente não dariam lucro nenhum.
É incrível como, apesar de tantas informações disponíveis gratuitamente na internet – o que, defendem alguns, eliminaria a função dos livros –, Caracalla consegue revelar fatos e acontecimentos desconhecidos pela maioria dos interessados pelo assunto. “Os exilados de Montparnasse” remonta a uma época que nos parece distante, mas que, na verdade, foi logo ali, há apenas algumas décadas de nós. E, mesmo para quem não esteve lá, a sensação ao terminar de ler o livro é uma só: saudade.