Meu primeiro contato com a obra da escritora escocesa Ali Smith foi com o romance “Por acaso” (publicado aqui em 2006), que tentei ler mais de uma vez e não consegui. Não lembro o motivo de a leitura não ter avançado, mas a culpa só pode ser minha.
Depois de “Por acaso”, outros livros da autora foram lançados no Brasil. Por causa das críticas elogiosas que pipocavam em jornais e nos blogs literários, pensei em tentar ler outro romance dela, “Garota encontra garoto”, publicado aqui em em 2008. Mas achei que não fazia sentido comprá-lo, já que eu não tinha conseguido ler “Por acaso”.
Em 2009 saiu outro romance, “Hotel Mundo”, também muito elogiado. E novamente deixei passar. Só voltei a pensar seriamente em ler Ali Smith quando saiu, em 2012, o livro de contos “A primeira pessoa”. Mas só comprei o livro em 2015, ao aproveitar uma promoção. Entretanto, não o li de imediato, havia outras prioridades no momento.
Dias atrás o tirei da estante, apenas para folhear. E acabei lendo o livro inteiro. Quer dizer, quase.
Os três primeiros contos são excelentes. O primeiro, “Um conto real”, é uma história metaliterária sobre as histórias curtas; ao mesmo tempo, nos apresenta a Kasia, personagem que luta pela popularização do acesso a um medicamento contra o câncer de mama.
O segundo, “A criança”, é quase uma obra-prima. Nele, um bebê é abandonado no carrinho de compras de uma mulher. Bem, ao menos é o que pensamos no início. No desenrolar da história, somos levados a crer que a mulher teve uma espécie de surto e deixou de reconhecer o próprio filho. Além disso, ela ouve o garoto, que tem menos de um ano, fazer piadas e discursos preconceituosos. É uma história que pode ser o retrato de um colapso nervoso, mas que ao mesmo tempo flerta com o fantástico. É, definitivamente, um belíssimo trabalho, e um dos melhores contos que li nos últimos anos.
No terceiro, “Presente”, uma mulher está numa lanchonete/bar em uma noite muito fria esperando ser servida. Seu pedido demora e, quando um homem no balcão puxa conversa, depois de ter sido ignorado pela garçonete, ela vai para o carro com intenções de ir embora. É quando lembra de um episódio marcante ocorrido em sua infância.
A partir daí, o livro fica um pouco desigual. Não consegui ler o quarto conto, que é labiríntico demais – preciso dizer que a literatura “alternativa”, digamos assim, não é muito a minha praia. Tenho predileção por narrativas mais tradicionais, sem invencionices estilísticas e malabarismos linguísticos.
O quinto conto, “Fidélio e Bess”, é razoável. O sexto, “Contando um conto”, é bem melhor. Temos novamente uma personagem diante de um colapso nervoso, mas a história é narrada pela filha dessa mulher, uma garota que está tentando lidar com as consequências do estado mental da mãe. Os seguintes, “Sem saída” e “A segunda pessoa” são apenas razoáveis.
O nível volta a subir com o nono conto, “Eu sei uma coisa que você não sabe”, o segundo melhor do livro. Acometido por uma doença misteriosa, que os médicos não conseguem detectar, um garoto passa os dias na cama e mal consegue comer. Desesperada, sua mãe decide recorrer a tratamentos alternativos. A história termina de forma brusca e inesperada.
Os três últimos contos, “N’água”, “Astúcia impetuosidade luxúria” e “A primeira pessoa” são acima da média, mas não têm nada de surpreendente, que valha a pena destacar. Talvez apenas que tanto “N’água” quanto o conto título também flertam com o fantástico. Para quem gosta do gênero, são pratos cheios, principalmente “N’água”, que coloca frente a frente uma mulher adulta e seu eu de quatorze anos de idade.
Alicerçado nas relações humanas, em lembranças e nos diálogos – sempre há pessoas conversando nos contos -, “A primeira pessoa” é um ótimo livro. Nada de extraordinário, mas um ótimo livro, sem dúvida.
Curto – cada conto tem de 10 a quatorze páginas -, “A primeira pessoa” pode ser lido em algumas horas. Se você tem curiosidade de ler alguma coisa de Ali Smith, acredito que este é um bom começo. Se não tem, fica aqui a dica.